se você é uma garota que cresceu nos anos 2000, provavelmente teve uma fase que seu maior objetivo era não ser como as outras garotas. sem julgamentos aqui! eu sei bem como é, eu também tive uma fase assim. e é bem provável que você esteja passando por uma fase de i’m just a girl (eu sou apenas uma garota), fazendo as pazes com a sua feminilidade ou algo nessa linha. novamente, digo por experiência própria. mas eu odeio a relação que a internet tem com a ideia de ser uma garota (ou mulher) nos dias atuais.
no começo de tudo, havia uma garota
nos anos 2000 era um absurdo sequer pensar ser uma garota feminina. meu maior medo era ser que nem as outras garotas, e todas as vilãs de filme da disney eram patricinhas loiras que gostam de rosa. mas a protagonista nunca cometeria o crime de ser uma garota normal: ela sempre era feminina na medida certa, nunca era preocupada com sua aparência e com coisas fúteis como maquiagem e roupas, apesar de sempre estar linda e maquiada. algumas rejeitavam todos os estereótipos femininos (mas ainda eram femininas, porque o maior crime de uma mulher é não ser nada feminina), outras simplesmente eram superiores às outras mulheres por motivos desconhecidos. provavelmente porque não gostavam de drama, segundo elas mesmas.
agora, nos anos 2010 surge a #girlboss. ela é ser uma mulher forte e decidida, que sobe na sua carreira com cotoveladas (e um terninho estiloso) e não aceita desaforo de ninguém. mulheres empreendedoras! mulheres onde elas quiserem! mulheres que fazem tudo! essa ideia caminha ao lado do temercore de 2016, e é marcada por uma falsa inclusão. temos a impressão de que se existem meia dúzia de mulheres CEOs, devemos estar no caminho certo para inclusão das mulheres na sociedade! já te digo agora: não estamos. as pouquíssimas CEOs consideradas #girlbosses são, em sua maioria, mulheres brancas e jovens que viram manchete quando saem dos seus cargos, já que obviamente a saída delas significa o fim da era #girlboss e o fracasso do feminismo como um todo.
e então, chegamos nos anos 2020. clean girl, girl dinner, hot girl walk, girl math, i’m just a girl. 2023 foi apelidado de the year of girl (o ano das garotas, em tradução livre) depois da quantidade absurda de tendências sobre ser uma garota que surgiram nesse ano e continuaram surgindo em 2024. muitos dizem que o filme barbie (2023) foi uma retomada da celebração do ato de ser uma garota (garota, não mulher) e, até certo ponto, faz sentido: o filme foi um grande retorno para a infância, quando mulheres ao redor do mundo lembraram de suas barbies favoritas e se vestiram de rosa dos pés à cabeça para ver o filme. foi um momento muito bonito de união através da nostalgia e de simplesmente ser uma garota, que logo virou uma bola de neve gigante. mas não faz sentido nenhum um filme sobre a barbie, a boneca que já teve mais de 200 profissões (sim, eu pesquisei), se transformar em uma narrativa sobre mulheres serem incapazes.
uma breve explicação sobre ser just a girl
ser apenas uma garota é, resumidamente, não conseguir lidar com seus problemas por ser, bom, apenas uma garota. até tem mais nuances, mas no geral sim: mulheres estão se invalidando só por causa do seu gênero e aparentemente, voltamos aos anos 50. mas a parte mais assustadora não é a morte do feminismo (desculpa, ser dramática é mais forte que eu), e sim a falta de compreensão de texto básica. a frase vem da música just a girl, da banda no doubt, que tinha como vocalista ninguém mais, ninguém menos que gwen stefani. justamente na parte da música que virou áudio de um milhão de tiktoks diferentes, ela diz: i’m just a girl / i’m just a girl in the world / that’s all you let me be / i’m just a girl living in captivity (eu sou apenas uma garota / eu sou apenas uma garota no mundo / isso é tudo que você me deixa ser / eu sou apenas uma garota vivendo em cativeiro). não é difícil entender que isso é uma ironia, certo? que a gwen stefani está falando que ela é julgada por ser uma garota, mas que ela é muito mais que isso, certo? coincidentemente ou não, o trecho da música que viralizou foi só as duas primeiras estrofes. ou seja, fica parecendo que a gwen stefani realmente está dizendo que é apenas uma garota e nada mais que isso, que é a mensagem oposta que música quer passar. o problema dessa trend já começa aqui.
você não é apenas uma garota
o problema do the year of the girl é que, muito rapidamente, a coisa azedou. os posts engraçadinhos que fazem você perceber que tem mais em comum com as outras mulheres do que achava? bom, eles foram substituídos por tendências como girl math, que consiste em mulheres achando graça de não saberem lidar com dinheiro. gente, quê? até 1974 as mulheres precisavam da assinatura de um homem para poder ter cartão de crédito no brasil. vocês não estão valorizando um direito conquistado há pouquíssimo tempo. longe de mim citar simone de beauvoir, mas basta uma crise para que os direitos das mulheres sejam questionados. esses direitos não são permanentes. milhares de mulheres lutaram para que você tivesse esse direito, e você tá falando na internet que não sabe matemática básica por ser uma mulher? ah, pelo amor de deus.
mas talvez o que mais me irrita é a infantilização de mulheres de vinte e poucos anos que se descrevem como garotas. com todo respeito, você não é apenas uma garota. você é uma mulher. você é inteligente e mais que capaz de viver sua vida de forma independente. tendências funcionam como um pêndulo: depois dos anos em que ser uma #girlboss era a norma é, de certa forma, natural ver o pêndulo ir para o outro lado e todas as mulheres fortes virarem garotinhas que não conseguem fazer nada porque são just a girl. talvez você esteja achando que eu estou exagerando. talvez você esteja pensando nossa, mas é só uma piada, deixa as pessoas se divertirem. mas você entende que é mais do que isso?
essa tendência de garotas incapazes reforça estereótipos ultrapassados e é um grande sinal da opinião da sociedade mudando. é um sinal de uma onda de conservadorismo entre os jovens, que não parece, mas começa com pequenas coisas em redes sociais. uma tendência aqui, sobre ser tão burrinha por ser apenas uma garota. outra ali, sobre ser uma namorada dona de casa, que sonha em depender financeiramente do marido e passar o dia fazendo cozinhando. e quando você menos esperar, as tradwives (esposas tradicionais) e jovens crentes fazendo devocional tomaram seu algoritmo. e com eles, vem opiniões extremamente distorcidas sobre o mundo e o papel das mulheres nele.
apesar de tudo, você ainda é uma garota
o apego com o rótulo de garota não é de todo ruim. falando por experiência própria, eu comecei a apreciar muito mais a ideia de que eu sou sim como todas as outras garotas conforme eu fui crescendo e, em paralelo, o algoritmo onipresente foi me mostrando mais e mais conteúdos que confirmavam que existem inúmeras experiências que unem todas as mulheres e são positivas. antes, a união (ou melhor, #sororidade) entre mulheres era sempre construída através de experiências ruins, como sofrer assédio na rua ou no trabalho, além inúmeras outras experiências horríveis que eu prefiro omitir aqui. afinal, você sabe muito bem do que eu estou falando.
agora, a união é construída através de experiências boas, como se arrumar para uma festa com as suas amigas, ou fazer amizades no banheiro feminino. ou talvez até não comer uma refeição completa, e sim uma combinação de comidas inusitada conhecida como girl dinner (que muitas vezes beira um distúrbio alimentar, mas isso é assunto para outra hora). enfim, o que era uma coisa bonita, uma união das mulheres percebendo que nem tudo que engloba ser mulher é ruim, virou uma grande festa de absurdos, consumismo (que nem deu tempo de mencionar no texto) e volta ao conservadorismo. honestamente, acho que era previsível. a internet se apropria de tudo que é bom e transforma em algo horrível em tempo recorde. mas não deixa de ser triste.
obrigada por ter lido até aqui, espero que você tenha gostado do meu texto raivoso. vale lembrar que ele foi escrito a partir de uma perspectiva muito pessoal; eu nunca me propus a fazer análises imparciais nessa newsletter. foi difícil organizar tudo que eu queria dizer e ainda faltou coisa, mas acho que consegui dizer pelo menos uma parte do que estava entalado na minha garganta. se você ficou interessada e quer ler mais sobre o assunto, eu recomendo esse texto da rebecca jennings, e esse artigo da isabel sykes.
notas & recomendações da semana:
⟶ eu sou uma grande fã de trento e fui informada recentemente (pelo murilo) que vão lançar trento sabor caramelo!!!!!! quero provar imediatamente!!!!!
⟶ eu amo a fernanda young entrevistando a rita lee (em 2006), é absolutamente tudo pra mim! é, ao mesmo tempo, muito datada e muito atual. é daqui que surgem as pérolas rita, tá usando sutiã? e a minha favorita, eu posso ser ridícula, mas não sou otária.
⟶ comecei a seguir @shopcatsshow no instagram e estou atualmente obcecada com os gatos de mercadinhos de esquina que eles apresentam no programa. todos são tão fofos!!! e tão queridos!!! tem legenda em inglês e espanhol, amo que a apresentadora (@michelladonna) é uma rainha bilíngue.
MEU DEUS, muito OBRIGADA por esse texto!!! É tão irritante ver mulheres achando engraçado se chamarem de burrinhas, fracas e incompetentes.
Que texto bom de ler! Hahaha E tudo sempre acaba em consumismo, né? Me fez pensar em todas as contraculturas que tiveram seu significado esvaziado até virar apenas mais uma sessão de roupas nas fast fashion. Capitalismo e patriarcado andando sempre de mãos dadas...